Contava-me o meu
pai, alcandroado nos seus setenta quase oitenta anos, que as memórias
lhe desfilavam velozes e cada vez mais para trás, até aos primeiros
anos de infância. Era uma espécie de flaschback muito nítido, com
pormenores detalhados, a côres ou a preto e branco e que recuava mais e
mais à medida que a velhice ia avançando. Eu, bloqueado em memórias
difusas e itinerantes, pouco claras e desfocadas, que não atingiam nem
pouco mais ou menos esses recônditos, ouvia admirado e fascinado com
tais habilidades. Passados vários anos, ainda não me aconteceram viagens
tão longas, mas começo a perceber melhor o fenómeno. O passado
afigura-se agora cada vez mais passado e com mais definição, ainda não
em HD, mas se calhar lá chegaremos.
Outro
aspecto dessa aprendizagem com os muitos anos do meu pai foi a
relatividade do tempo. Já se sabe que o tempo é uma medida relativa,
aprendeu-se na escola, mas a experiência dessa relatividade é outra
coisa.Ter mais tempo porque ele nos foge cada vez mais, é um conceito
que só compreendi com o avançar da idade. Adequar o tempo à
multiplicidade das situações da vida, é como o trabalho do relojoeiro
num relógio de precisão. Falávamos disso, da minha impaciência, da
urgência em realizar, da pressa em ser e ter, e eu achava que o
entendia. Mas não, só hoje é que começo a ter uma ideia.
Um
outro tema das nossas deambulações era sobre a pouca consideração que a
sociedade e os tempos tinham pelas pessoas velhas. Havia e há uma
filosofia do descartável, de prazos de validade ultrapassados, como se
nos velhos se acumulasse uma enorme existência de experiências antigas e
inúteis que na actualidade não servem para nada. O meu pai tinha uma
enorme tristeza e revolta pelo desprezo votado à experiência e
sabedoria dos seus anos. Dizia-lhe que não , que não era assim. Hoje
começo a desconfiar de que ele tinha razão.
Estas reflexões levam-me evidentemente, ao desencontro de gerações que se resolveu apelidar de conflito.
Trata-se
a meu ver de um falso cliché. O que existe é uma escabrosa falta do
sistema e do modelo educativo. Na escola e nas famílias. Ninguém ensina a
ninguém que o que existe e usamos resulta do trabalho contínuo e
sistemático das gerações anteriores. Que eu saiba, não se cultiva nas
escolas, não está nos programas curriculares, o principio da colaboração
e troca de saberes entre os velhos e os novos. Na família os mais
velhos tomam conta dos mais novos, sem dúvida, mas a partir de um certo
ponto, as suas opiniões e o seu saber são apenas tolerados.
É
espantoso que os pedagogos não se interessem pela questão do
entrosamento das gerações, que a sabedoria dos mais velhos, "sagesse"
chamam-lhe os franceses, não seja tomada como ponto de partida para a
construção de um modelo social mais equilibrado, mais culto e educado , e
que as competências dos jovens não sejam transmitidas ao mais velhos. O
papel educativo básico na família não é suficiente e nas escolas o que
se transmite preocupa-se com outras matérias.
A
sociedade ocidental tão ávida em explorar económicamente os povos
africanos e asiáticos, nunca teve um olhar para a construção familiar e
educativa desses povos, um olhar que fosse para além do folcrore tão
querido a alguns intelectuais, de esquerda diga-se de passagem. Aí estão
exemplos esclarecedores de como devem ser tratadas estas questões. Sem
me alongar, refiro apenas os rituais de iniciação dos jovens, que
decorrem em momentos específicos do seu desenvolvimento e crescimento,
e após longos períodos de aprendizagem tutorizados pelo mais velhos que
lhes passam o que sabem.
Estou
absolutamente convicto de que o modelo social, económico e político que
emergirá da desgraça reinante actualmente, tem que se fundamentar na
interacção das gerações, na troca efectiva de saberes e competências
entre novos e velhos.
O passado está vivo no presente e projecta-se no futuro, como um rio que se alimenta a montante e alimenta a juzante.
jotacmarques
É mesmo, quem me dera que fosse fácil escolher as coisas boas dos diversos mundos e deitar as outras fora.
ResponderExcluirO modelo educativo, fruto das escolhas sociais do mundo ocidental é que deixa muito a desejar.
O quadro de valores da escola e da família que insiste no tão estafado -ter , em vez de ser - é que minou as relações inter-geracionais . Só muito poucos velhos continuam a produzir e a poder consumir. Se não tens dinheiro e poder não existes- essa foi a mensagem passada aos jovens, na escola e na família .Quanto ao tal cliché - conflito de gerações, acho saudável, é assim que se cresce.