quarta-feira, 27 de junho de 2012

A idade da razão ou a razão da idade?

Contava-me o meu pai,  alcandroado nos seus setenta quase oitenta anos, que as memórias lhe desfilavam velozes e cada vez mais para trás,  até aos primeiros anos de infância. Era uma espécie de flaschback muito nítido, com pormenores detalhados, a côres ou a preto e branco e que recuava mais e  mais à medida que a velhice ia avançando. Eu, bloqueado em memórias difusas e itinerantes, pouco claras e desfocadas, que não atingiam nem pouco mais ou menos esses recônditos, ouvia admirado e fascinado com tais habilidades. Passados vários anos, ainda não me aconteceram viagens tão longas, mas começo a perceber melhor o fenómeno. O passado afigura-se agora cada vez mais passado e com mais definição, ainda não em HD,  mas se calhar lá chegaremos.

Outro aspecto dessa aprendizagem com os muitos anos do meu pai foi a relatividade do tempo. Já se sabe que o tempo é uma medida relativa, aprendeu-se na escola, mas a experiência dessa relatividade é outra coisa.Ter mais tempo porque ele nos foge cada vez mais, é um conceito que só compreendi com o avançar da idade. Adequar o tempo à multiplicidade das  situações da vida,  é como o trabalho do relojoeiro  num relógio de precisão. Falávamos disso, da minha impaciência, da urgência em realizar, da pressa em ser e ter, e eu achava que o  entendia. Mas não, só hoje é que começo a ter uma ideia.

Um outro tema das nossas deambulações era sobre a pouca consideração que a sociedade e os tempos tinham pelas pessoas velhas. Havia e há uma filosofia do descartável, de prazos de validade ultrapassados, como se nos velhos se acumulasse  uma enorme existência de experiências antigas e inúteis que na actualidade não servem para nada. O meu pai tinha uma enorme tristeza e revolta pelo desprezo votado  à experiência e sabedoria dos seus anos. Dizia-lhe que não , que não era assim. Hoje começo a desconfiar de que ele tinha razão.

Estas reflexões levam-me evidentemente, ao desencontro de gerações que se resolveu apelidar de conflito.

Trata-se a meu ver de um falso cliché. O que existe é uma escabrosa falta do sistema e do modelo educativo. Na escola e nas famílias. Ninguém ensina a ninguém que o que existe e usamos resulta do trabalho contínuo e sistemático das gerações anteriores. Que eu saiba, não se cultiva nas escolas, não está nos programas curriculares, o principio da colaboração e troca de saberes entre os velhos e os novos. Na família os mais velhos tomam conta dos mais novos, sem dúvida, mas a partir  de um certo ponto, as suas opiniões e o seu saber  são apenas tolerados. 

É espantoso que os pedagogos não se interessem pela questão do  entrosamento das gerações, que a sabedoria dos mais velhos, "sagesse" chamam-lhe os franceses, não seja tomada como ponto de partida para a construção de um modelo social mais equilibrado, mais culto e educado , e que as competências dos jovens não sejam transmitidas ao mais velhos. O papel educativo básico na família não é suficiente e nas escolas o que se transmite preocupa-se com outras matérias.
A sociedade ocidental tão ávida em explorar económicamente os povos africanos e asiáticos,  nunca teve um olhar para a construção familiar e educativa desses povos, um olhar que fosse para além do folcrore tão querido a alguns intelectuais, de esquerda diga-se de passagem. Aí estão exemplos esclarecedores de como devem ser tratadas estas questões. Sem me alongar, refiro apenas os rituais de iniciação dos jovens, que decorrem em momentos específicos do seu desenvolvimento e crescimento, e  após longos períodos de aprendizagem tutorizados pelo mais velhos que lhes passam o que sabem.

Estou absolutamente convicto de que o modelo social, económico e político que emergirá da desgraça reinante actualmente, tem que se fundamentar na interacção das gerações, na troca efectiva de saberes e competências entre novos e velhos. 

O passado está vivo no presente e  projecta-se no futuro, como um rio que se alimenta a montante e alimenta a juzante.

jotacmarques

Um comentário:

  1. É mesmo, quem me dera que fosse fácil escolher as coisas boas dos diversos mundos e deitar as outras fora.

    O modelo educativo, fruto das escolhas sociais do mundo ocidental é que deixa muito a desejar.
    O quadro de valores da escola e da família que insiste no tão estafado -ter , em vez de ser - é que minou as relações inter-geracionais . Só muito poucos velhos continuam a produzir e a poder consumir. Se não tens dinheiro e poder não existes- essa foi a mensagem passada aos jovens, na escola e na família .Quanto ao tal cliché - conflito de gerações, acho saudável, é assim que se cresce.

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