segunda-feira, 25 de junho de 2012

Campo de Ourique

Campo de Ourique é um bairro diferente, é o Quartier  Latin de Lisboa, passe a analogia. Há 50 anos Campo de Ourique era quase um Estado independente, no essencial era auto-suficiente, dois cinemas com sessões diárias  à tarde e  à noite, muitos "cafés" para poisar em horas longas, lojas de vários e muitos abastecimentos, inúmeras  tascas e restaurantes de gastronomias económicas, jardins para passeatas, e muito mais. Classificava-se a população de pequena e média burguesia, gente remediada assim se dizia. O quotidiano deste bairro era como extractos da "Crónicas dos bons malandros" de Mário Zambujal e de " O que diz Molero" de Dinis Machado, duas obras literárias ficcionais dos usos e costumes dos "pintas" lisboetas, miscigenados com vidas mais pacatas e convencionais. Paravam estes "pintas" no Canas e no Gigante,"cafés" de referência do bairro, numa partilha de convívios. Vinham das zonas limítrofes do agregado, do Casal Ventoso, hoje muito diferente, da rua Maria Pia, dos Sete Moínhos, do pátio do Baúte nos Prazeres e já desaparecido, da rua Campo de Ourique, e de um modo geral das várias "vilas" existentes no bairro. As "vilas", que também existiram e existem por toda a cidade, concentravam-se "à mão de semear" do complexo industrial que existia em Alcântara, e os moradores eram gente que trabalhava árduamente e mal pagos nas fábricas e serviços subsidiários. Era deste universo de pessoas que saíam os "pintas", "lumpenproletariado" que vivia de esquemas mais ou menos ilegais, quando não da pequena criminalidade.

Havia diversas associações, recreativas, desportivas e culturais, apelidadas de "sociedades", muitas emanadas do empreendedorismo  e espírito corporativo das organizações operárias. Foram fundamentais na divulgação cultural e na gestão dos tempos livres, nomeadamente através de grupos de teatro, clubes desportivos e bibliotecas. Nas escolha dos corpos sociais destas organizações,  através de eleições directas, residiu durante muitos anos o único exercício democrático no tempo da ditadura.
O "must" das ditas "sociedades" eram "Os amigos de Apolo" situados na  "Panificação",onde havia desde o sec.XIX  o ensino de música e das danças de salão. Memoráveis os bailes e os concursos de dança, eram iconográficos do bairro. Ainda tenho na memória o baile de Carnaval em que o meu amigo Zé Bocas, mascarado de mulher, dançou e "flirtou" até de madrugada com um "pintas" que ficou furioso quando o Zé finalmente tirou a máscara da cara. Queria bater-lhe, tal era a raiva de macho enganado com a reputação irremediávelmente  abalada.

Campo de Ourique mudou como não podia deixar de ser, mudou como tudo na vida muda, inexorávelmente, mas recebeu uma herança  genética que é muito visível, no bulício do mercado, a "praça" como se diz, no perder-se no tempo na esplanada da Tentadora, nas passeatas na rua Ferreira Borges, no lazer de "dar à língua" no jardim da Parada, enfim, no eterno encontro das pessoas que  se conhecem de sempre com os lugares imortais da nossa memória.

O bairro é agora muito mais cosmopolita, melhorou num certo sentido, mas não me passa a memória dos dias nesta "aldeia na cidade", do tempo natural passado sem "stress",  descomprometido de aparelhos e de comunicações permanentes via satélite, das conversas intermináveis até quase manhã na esplanada acanhada do Ruacaná ou do"Meu Café", do estudo a fingir  de tardes inteiras na cave do "Raiano", da endoctrinação política e ideológica dos "engagé" mais velhos no "Tamboril", das bebedeiras do Ricardo Alberti cozidas com poesia, do fascínio das história dos velhos anarquistas que tinham lutado na Guerra Civil de Espanha, do Joaquim da drogaria, o Steck das ceras e perfurmes inventados e da fotografia com arte de Leicas e Rolleiflexs, do Sr. José da taberna das "Portas verdes",  dos Carinhas, dos Malacas, do Babo, do João Castel-Branco, do Zé Monteiro, do Gaspar, das minhas amigas, eu sei lá.................................................................

Onde andarão????????????????????

jotacmarques

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